domingo, 20 de setembro de 2009

Exposição: "Pedra e Mistério: comunhão ao serviço da fé".

Exposição "Pedra e Mistério: comunhão ao serviço da fé". Patente no Museu Municipal - Terras de Besteiros, Tondela de 16 de Setembro a 15 de Novembro. Esculturas em Pedra de Ança dos séculos XV e XVI.




Arranca o Estatuário uma pedra dessas montanhas, toscas, bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem; primeiro membro a membro, e depois feição por feição até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, talvez um santo, que se pode pôr no altar.

P.e António Vieira
Sermão do Espírito Santo (1657)




A arte expressa formas de sentir a vida, numa comunhão penetrante que orienta o homem para caminhos e acções que fundamentam e preenchem de sentido a sua existência. Buscando o inatingível e aspirando transpor a sua condição finita de ser para a morte, o homem serviu-se da arte para definir o que parecia indefinível e através da escultura representou o desconhecido que idealizara. A fé e o misticismo de cada comunidade foram os autores de uma profícua produção de imagens escultóricas, na sua maioria de artistas anónimos, que ainda hoje, volvidas algumas centúrias, preservam o seu culto, devendo ser entendidas como uma excepcional herança que nos cumpre valorizar e legar aos vindouros.
As imagens que repousam nos venerados altares de uma igreja estabelecem, para os crentes, a ligação entre a Terra e o Céu e compõem toda uma encenação catequética e conducente à salvação. As esculturas que proliferam pelos edifícios religiosos representando Santos, a Virgem ou Cristo, pelo seu exemplo vivencial, servem de modelo aos fiéis e apresentam-se como intermediárias entre estes e Deus, permitindo-lhes superar as asperezas da vida ou inspirando-lhes uma acalentada esperança num devir mais promissor.
Com matérias-primas mais nobres ou mais modestas, com mestria na sua execução ou de tratamento mais popular, às esculturas de vulto, o Homem sempre dedicou penhorada devoção. A elas reservou incontáveis horas de oração, segredou medos e anseios, depositando a certeza de um auxílio, e almejando a bem-aventurança, o Reino dos Céus.
As imagens religiosas portadoras de uma apreciável beleza estética e confeccionadas no mais nobre material, respondendo aos programas iconográficos estabelecidos e de acordo com as propostas estilísticas predominantes, incorporam o sentido devocional e religioso das populações. A beleza das imagens, mais que uma beleza estética, encerra uma linguagem comunicativa fundamental para os fiéis na consolidação da sua fé.
No concelho de Tondela regista-se a presença de um número considerável de imagens de vulto esculpidas em pedra de Ançã. Estes exemplares, que marcam os séculos XV e XVI, anunciam o enriquecimento dos programas iconográficos da Igreja Católica. Ora, num quadro de renovação da consciência religiosa, importava fortalecer ou recriar o vínculo entre o Homem e o Ser Criador, estreitando-o e vivificando-o por força de um permanente contacto visual que influenciaria no modo individual de sentir e de viver a religiosidade. Neste sentido, o alvorecer da Modernidade fez aportar às correntes artísticas vigentes um pujante fluxo de cristianismo, responsável pelo ditar de novas matizes imagéticas, florescentes nos séculos posteriores.
O número significativo de imagens talhadas em calcário na área geográfica concelhia permite-nos associar tal proliferação à inegável proximidade entre Tondela e Coimbra, a que acrescia obviamente a facilidade nas vias de acesso, através das quais, com alguma rapidez, se transportavam as pesadas peças. Esta ordem de razões potenciaria a afluência de espécimes cinzelados na referida matéria-prima. Com efeito, os canteiros das oficinas de Coimbra utilizavam o calcário oriundo das pedreiras de Ançã para esculpirem as suas obras de arte. Este material foi largamente utilizado entre os séculos XIV e XVII em detrimento do granito, por apresentar qualidades inerentes que possibilitavam a modelação e a plástica desejadas.
O avolumar de encomendas, especialmente na região da Beira, terá incrementado fortemente as referidas oficinas coimbrãs que durante os séculos XV e XVI se encontravam especialmente laboriosas. Para responder à crescente procura muitas esculturas foram executadas por artistas de parcos méritos. Contudo, na circunscrição territorial do concelho de Tondela, encontram-se peças esculpidas por artistas de valor reconhecido, destacando-se João de Ruão e João Afonso, figurando exemplares com níveis de qualidade muito distintos. Por outro lado, não é de descurar a hipótese de também se fazerem encomendas de pedra de Ançã a fim de ser trabalhada por habilidosos canteiros locais.
O grupo escultórico que integra a presente exposição assume-se como uma pequena amostra da totalidade de imagens de vulto em pedra de Ançã que as paróquias albergam em seus templos. Estas esculturas, todas elas marcadas por uma frontalidade e rigidez que caracterizam a produção escultórica sua contemporânea, encerram na expressividade dos rostos e nas suas vestes uma sensibilidade humanista e uma naturalidade propiciadoras de aproximação e de intimidade com os devotos.
A Igreja reconhece na escultura uma forma de aproximação dos fiéis às personagens religiosas da sua devoção. A representação escultórica permite humanizar a nível físico e emocional, personificando o abstracto e definindo os gloriosos.





Comissárias da exposição: Dr.ª Inês da Conceição do Carmo Borges (Investigadora colaboradora do CEAUCP - Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto/ Campo Arqueológico de Mértola – Estudos Multidisciplinares em Arte); Dr.ª Susete Filipa Lopes Pereira Rodrigues; Dr.ª Vera Lúcia Almeida Magalhães (Investigadora colaboradora do CEAUCP - Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto/ Campo Arqueológico de Mértola – Estudos Multidisciplinares em Arte).




2 comentários:

  1. Deliciei-me, Inês, lendo e relendo este texto brilhante.

    Seja pela substância tão rica de detalhes quanto à origem das peças, seu enquadramento histórico e o detectar possível das autorias, seja pela belíssima veste estilística de que tal síntese histórica se viu aqui empossada.

    Abraço.
    E, tal como já o fiz alhures, deixo os meus votos do mais rasgado sucesso no acolhimento a esta mostra preciosa.

    L-

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  2. Parabéns, Inês!
    Gostei muito! O texto é excelente, bem como a parte gráfica do blog.
    Beijinho
    CCN

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